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O “silêncio” dos papagaios: por que um dos principais dormitórios coletivos que já reuniu 50% da população do litoral do estado de papagaio-de-cara-roxa somou menos de 9% das visualizações em 2024?

Atualizado: há 3 dias

Desde que me formei em biologia, em 1990, me envolvi com a SPVS (Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental), acompanhando projetos na área de fauna e educação para a conservação. Em paralelo, trabalhei em outras instituições e no Governo Federal, focando em iniciativas de conservação de fauna. Em 1998, a vida me presenteou com a oportunidade de planejar e implementar uma iniciativa de conservação de fauna de longo prazo. Um sonho para qualquer bióloga envolvida com conservação da natureza. Foi assim que começou o projeto de Conservação do papagaio-de-cara-roxa na SPVS, uma ave que me encantou desde a primeira vez em que presenciei um dos mais belos espetáculos da natureza: o entardecer na Baía dos Pinheiros, com a revoada intensa e sonora desses papagaios.


Desenhamos um plano de ação envolvendo parceiros, com objetivos e metas para minimizar as principais ameaças: o roubo de filhotes e a retirada de espécies florestais chave para sua sobrevivência. Lembro-me muito bem do primeiro ano do projeto, quando nos deparamos com ninhos saqueados e filhotes desaparecidos. A sensação de impotência por não conseguir trazer de volta aquele filhote, e ver o casal de papagaios próximo ao ninho sem entender o que havia acontecido, foi devastadora. Muitos anos se passaram, com muito trabalho e dedicação da equipe do projeto, sempre contando com a participação de moradores das comunidades locais e de boas parcerias. Nem sempre atingimos os resultados esperados, mas em nenhum momento pensamos em desistir. Hoje, quando chego às comunidades, muitas vezes ouço os moradores falarem sobre os papagaios com pertencimento e reconhecimento do quanto as ações realizadas foram fundamentais para a preservação da espécie no litoral.


Entre as inúmeras ações que realizamos, o monitoramento populacional nos traz resultados significativos, pois indica a situação da espécie em todo o seu território, mostrando tendência de recuperação ou declínio da população. Por isso, desde 2003, as contagens populacionais são realizadas anualmente em toda área de distribuição da espécie no litoral do Paraná. Entre 2003 e 2019, registramos as variações anuais do número total de papagaios, os deslocamentos entre as ilhas e o continente, e as variações de ocupação em cada dormitório. A partir de 2015, começamos a registrar um número maior de aves utilizando os dormitórios coletivos, acima de sete mil indivíduos, resultado sempre comemorado por indicar uma tendência de recuperação da população no litoral do Paraná.


Papagaio-de-cara-roxa


Preocupações


Apesar de tantos anos de monitoramento contínuo e dedicação, novos desafios surgem no horizonte. O censo de 2024 no Paraná, por exemplo, nos trouxe preocupação. A Ilha do Pinheiro, localizada dentro do Parque Nacional do Superagui, no litoral do Paraná, historicamente, reuniu a maior concentração de papagaio-de-cara-roxa (Amazona brasiliensis), uma espécie endêmica da Mata Atlântica, ou seja, em todo o mundo, só existe neste Bioma e vive nas planícies litorâneas do sul de São Paulo (SP) até o litoral do Paraná (PR).  Em média, 34% da população contabilizada a cada ano de monitoramento era registrada no dormitório da Ilha do Pinheiro. Em 2009, nossa equipe chegou a registrar cerca de 50% da população total de papagaios-de-cara-roxa do litoral do Paraná se abrigando na Ilha do Pinheiro, com avistamentos superiores a 2.500 papagaios neste no local. 


No entanto, no censo mais recente, realizado entre maio e junho de 2024, apenas 455 indivíduos, o que equivale a 8,6% do total da população, foram avistados se abrigando na Ilha. Em conversas com moradores, percebemos uma crescente preocupação com episódios que podem estar contribuindo para esse cenário. Eles relataram que os papagaios têm se deslocado com menos frequência para a Ilha do Pinheiro, e em menor quantidade, possivelmente devido ao aumento de embarcações na região, com buzinas, som alto e até fogos de artifício próximos à Ilha.


Ainda é difícil determinar se este é um fenômeno isolado deste ano ou se já vem ocorrendo há mais tempo, já que o último censo ocorreu em 2019. Naquele ano, no litoral do Paraná, onde ocorre a maior parte da população, foram registrados 7.493 papagaios, utilizando seis dormitórios coletivos entre Guaratuba e Guaraqueçaba. Em 2018, um ano antes, foram contabilizados 7.366 indivíduos nesses locais. A média se mantinha estável, mas agora, os números se alteraram significativamente. Além da Ilha do Pinheiro, locais como a Estação Ecológica da Ilha do Mel e a Ilha Rasa, na Área de Proteção Ambiental de Guaraqueçaba, também são locais de contagem e apresentaram os melhores números. Este ano, nos seis locais (dormitórios coletivos), foram contabilizados 5.245 indivíduos, um número semelhante ao de 2013. No entanto, os baixos índices de papagaios avistados na Ilha do Pinheiro fizeram com que o total de 2024 ficasse abaixo das expectativas.


O censo de 2024 utilizou a mesma metodologia dos anos anteriores. Realizamos quatro contagens nos períodos da manhã e da tarde, por três dias consecutivos, para selecionar os melhores registros, em condições meteorológicas adequadas: sem vento, sem neblina e, preferencialmente, com sol. Em dias ensolarados e sem vento, os deslocamentos dos papagaios tendem a ser maiores e a visibilidade para os contadores é melhor. Apesar de o cenário para a contagem ter sido ideal, os índices ficaram muito abaixo dos anos anteriores.


Papagaio-de-cara-roxa

Esses números são um sinal de alerta. Os resultados levantam questões importantes, como: quais fatores estão contribuindo para a diminuição de indivíduos no principal dormitório coletivo do litoral do Paraná? Quais novos locais os papagaios podem estar utilizando? O que está gerando a alteração no comportamento das aves? Estas são perguntas que ainda precisamos investigar para responder, mas já temos algumas suspeitas.


O esforço em busca de respostas só será eficaz se as pessoas que visitam a região colaborarem e respeitarem esse santuário, e se as instituições governamentais responsáveis pelas áreas protegidas no litoral do Paraná fiscalizarem e ordenarem o território, de forma a evitar que o papagaio-de-cara-roxa, símbolo da Ilha do Pinheiro e da Mata Atlântica, seja ameaçado por perturbações que podem comprometer sua preservação na região. Ter o privilégio de assistir a uma revoada de papagaios-de-cara-roxa, acompanhada pela intensa vocalização durante esse momento, é algo lindo e singular. Mas, se os trabalhos de conservação da espécie não encontrarem terreno fértil e adequado, isso pode comprometer a dinâmica e até a sobrevivência de uma população que habita a região há milhares de anos. O "silêncio dos papagaios" nos preocupa profundamente, e é um alerta que não podemos ignorar.



Artigo escrito por Elenise Angelotti Bastos Sipinski. Bacharel em Ciências Biológicas e mestre em Conservação da Natureza pela UFPR. Atualmente é doutoranda de Gestão Ambiental na Universidade Positivo. Soma mais de 25 anos de experiência em gestão de projetos de conservação da natureza. Atuou como pesquisadora e coordenadora de projetos voltados a proteção de fauna, com destaque para o projeto de conservação do papagaio-de-cara-roxa. Tem mais de dez anos de experiência em convênios com prefeituras e empresas privadas em ações de conservação de áreas urbanas e peri urbanas. A partir de 2020, foi gestora do convênio entre Itaipu e SPVS para avaliar a viabilidade da translocação da harpia.  Atualmente coordena os projetos de conservação de fauna na SPVS, atuando nos estados do Paraná e São Paulo com projetos voltados à conservação do papagaio-de-cara-roxa, papagaio-de-peito-roxo e mico-leão-da-cara-preta. 

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