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O processo para a conservação da biodiversidade

Uma narrativa que busca relacionar o caminho percorrido por uma instituição conservacionista brasileira com eventos relevantes dos últimos quarenta anos


Vista aérea da Reserva Natural Guaricica da SPVS. Foto: Gabriel Marchi.

PARTE I – 1980 - 2000


Os meses de 1984 que precederam a fundação da SPVS (Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental) foram bastante intensos para um grupo de profissionais dedicados a manterem suas expectativas de atuar no campo da conservação, apesar das enormes limitações existentes à época. Reuniões noturnas semanais tinham por propósito formatar as bases do que poderia representar um tipo de “tábua de salvação” para aquela equipe, uma vez que não havia praticamente nenhum espaço para vinculação profissional em instâncias públicas ou corporações privadas. A criação de uma organização do terceiro setor, de fato, foi a saída encontrada para manter as expectativas de inserção num mercado praticamente inexistente. Afinal, a conservação da biodiversidade já se mostrava uma demanda emergencial, dada a situação de avanços na degradação do bioma Mata Atlântica.


Nos anos seguintes, ainda na década de 1980, um esforço bastante grande foi necessário para manter viva uma instituição praticamente sem aportes de recursos, demandando um trabalho voluntário de boa parte dos envolvidos. Ao mesmo tempo, houve um entendimento de que, para existirem potenciais possibilidades de projetos apoiados, um trabalho sistemático de relacionamento, articulação e de cuidados burocráticos era sumamente necessário, incrementando a complexidade demandada pelos então gestores da instituição e demais integrantes. Programas lúdicos de educação ambiental e inventários florísticos e faunísticos, além de ações de restauração de áreas degradadas, foram colocados em prática nesse período, com apoio de empresas privadas e instâncias de governo.


Ao mesmo tempo, uma fração dos membros se mostrou mais disposto a assumir as demandas gerenciais. Sempre foi fundamental manter um ambiente de ânimo positivo com os demais, na expectativa de que os esforços realizados em algum momento seriam recompensados. Embora representassem ações de pequena escala, a entrada de projetos aprovados, embora pontuais e de curta duração, foi um marco na história da SPVS, sendo comemorados com muito entusiasmo, dando início a um amplo repertório de atividades sempre marcadas pela excelência técnica e pela dedicação ilimitada de seus executores.


Aqui no Brasil, foi extremamente relevante a promulgação da nova Constituição, em 1989, com enormes avanços no campo ambiental.  Na esfera pública, tomaram forma em vários estados as Secretarias de Meio Ambiente, bem como foi criado, no âmbito federal, o Ministério do Meio Ambiente, em 1992. Em contraponto com rotineiros posicionamentos, colocando em dúvida a razão de um esforço para atuação no campo da conservação, uma vez que havia ainda um entendimento bastante reacionário em relação ao tema, a década de 1990 se inicia com a realização da ECO-92, no Rio de Janeiro. É marcante o efeito deste evento, o que proporcionou uma ampliação significativa do número de organizações atuando no campo da conservação no Brasil e em outros países. Notadamente, o setor público passou a ter mais espaços para garantir uma agenda voltada à proteção do patrimônio natural, estruturando melhor as instituições responsáveis e gerando um arcabouço legal que avançou de forma expressiva nesse período.


Nesta época, a SPVS teve a possibilidade de dar foco na região do litoral norte do Paraná, com a realização de um amplo diagnóstico da Área de Proteção de Guaraqueçaba (Plano Integrado de Conservação para a Região de Guaraqueçaba, 1992), mantendo suas ações na região de forma continuada, desde esse primeiro reconhecimento realizado. Uma atuação muito próxima com o IBAMA, gestor das principais Unidades de Conservação da região à época, foi um dos pontos mais relevantes nesse período. Iniciaram-se os trabalhos com a espécie Amazona brasiliensis (papagaio-de-cara-roxa), até hoje mantida de forma continuada, e agregando atualmente novas espécies como  Amazona vinacea (papagaio-de-peito-roxo) e Leontophitecus caissara (mico-leão-de-cara-preta), além da Harpia harpyja (harpia), mais recentemente.


Uma sequência de eventos da Conferência das Partes sobre Clima e Biodiversidade passou a ter uma agenda fixa e o tema ambiental ganhou muito espaço, num primeiro momento alertando sobre os riscos de impactos sociais e econômicos futuros, caso medidas suficientes não fossem estabelecidas pelos países e também pelas corporações. Foi na década de 1990, que parte do setor privado iniciou uma postura, embora sutil, mais amigável em relação ao tema da "sustentabilidade", em especial gerando avanços significativos na geração de novas tecnologias e processos industriais que buscam a minimização dos impactos gerados por suas atividades. O tema das mudanças climáticas ganhou espaço. Ao mesmo tempo, a agenda da conservação da biodiversidade não conseguiu uma evolução mais significativa, mantendo-se, ainda, em compasso de espera.


PARTE II – 2000 - 2023


O início da década de 2000 mudou de forma radical as expectativas de atuação da SPVS na Mata Atlântica, com o advento sequencial de três projetos de combate ao aquecimento global por meio de ações de conservação e restauração de áreas degradadas, todos direcionados aos municípios de Guaraqueçaba e Antonina no Paraná. Uma ação de aquisição de terras é colocada em prática, constituindo em pouco tempo três Reservas Naturais de propriedade da SPVS, mantidas até os dias de hoje a partir de parcerias muito relevantes com empresas privadas (GM, CHEVRON e AEP), proporcionadas pela ONG internacional TNC (The Nature Conservancy).


No contexto geral, as pressões sobre o patrimônio natural seguiram fortes, com perdas significativas de áreas naturais em todos os biomas brasileiros e com uma sinalização bastante crítica à Mata Atlântica, historicamente pressionada pelas ações de intensos processos de degradação. Toma corpo a partir de 2003 uma iniciativa inovadora denominada “Adoção de Áreas Naturais”, colocada em prática pela SPVS, com a adoção da Reserva do Uru, em área de Floresta com Araucária e Campos Naturais, pela empresa Posigraf. Um reconhecimento de uma empresa de que a conservação fazia também parte de suas responsabilidades na pauta da gestão ambiental corporativa,  a partir de apoio financeiro voluntário para garantir a proteção de uma área natural de propriedade privada.


A tentativa de fazer destas iniciativas um encadeamento que permitisse resultados em maior escala e influências no campo das políticas públicas sempre esteve dentro dos propósitos da SPVS, uma vez que não cabe ao terceiro setor a implantação de ações mais abrangentes, mas sim, ao setor público e privado. Neste contexto passam a ser mais valorizadas as ações de comunicação e relacionamento, dentro de um entendimento de que projetos demonstrativos exitosos não podem alcançar notoriedade e servir de exemplo se não forem amplamente difundidos como novas práticas. Ao mesmo tempo, as atividades de articulação com as comunidades locais se mostraram fundamentais na consolidação das Reservas Naturais, agregando funcionários locais em ações de capacitação e com o incremento de atividades de Educação para Conservação, em especial para jovens moradores locais.


A primeira década dos anos 2000 foi marcada por avanços e retrocessos no campo ambiental, com agendas de compromissos de proteção da Amazônia com apoio de países europeus representando uma esperança importante para equacionar as pressões de destruição de larga escala, embora dos demais biomas brasileiros também seguissem sendo degradados, notadamente com perdas consideráveis de áreas naturais no Cerrado. Na Mata Atlântica, a promulgação da Lei de proteção do bioma encerra as práticas de "manejo florestal de madeira nativa" e garante a proteção legal de áreas naturais em estágio médio e avançado de conservação. As diversas medidas buscando avanços no campo da conservação e das mudanças climáticas são insuficientes para mudanças reais de cenário, incrementando as ameaças de impactos gerados pelo desequilíbrio ambiental em âmbito global e regional. 


Em 2007, o Programa de Adoção de Áreas da SPVS passa a ser denominado de "Desmatamento Evitado" a partir de parceria com a empresa Seguros HSBC, proporcionando um processo de adoção de 32 áreas privadas detentoras de fragmentos significativos de Floresta com Araucária e Campos Naturais, com quase cinco mil hectares sendo preservados em acordo com seus proprietários. A iniciativa teve um aspecto ainda mais relevante do que a escala obtida, pois foi desenvolvida a partir de um novo produto do banco: os "Seguros Verdes", que alavancaram a área de seguros de automóveis e residências da empresa em todo o Brasil.


Na mesma época, inicia-se um esforço de estimular a participação das empresas em geral na conservação da biodiversidade, unindo a SPVS, Fundação Grupo Boticário, Fundação Avina e Posigraf, na busca de um mecanismo que proporcionasse uma condição consistente de incorporar a conservação na gestão ambiental corporativa. É anunciada, em 2010, o Instituto LIFE, uma acreditadora que cria um mecanismo inédito de certificação no mercado, capaz de mensurar o impacto ambiental não mitigável de negócios e de aportar ações voluntárias e adicionais no campo da conservação como resposta. Surge a primeira Certificação de Biodiversidade, uma ferramenta potente para mudar de forma determinante a relação das empresas com o patrimônio natural do qual dependem.


Na última década, o advento de uma versão avançada do conceito de sustentabilidade aparece no mercado e toma corpo. Os padrões ESG (ou ASG, em português) parecem representar uma segunda chance para as corporações gerarem iniciativas com métricas mais robustas e confiáveis, fugindo de posicionamentos mais superficiais que muitas vezes valorizaram o marketing à frente de mudanças reais de posicionamento. Ao mesmo tempo, em 2012 ocorre um retrocesso nas políticas ambientais brasileiras, com o enfraquecimento do Código Florestal, patrocinado pelo setor agrícola em comunhão com o Congresso e o Executivo. Uma posição mais determinante visando o combate às mudanças climáticas e à perda da biodiversidade, com exceções excepcionais, parece não estar alinhado às premissas de governos e tampouco do setor corporativo, numa análise de conjunto.


2015 marca uma nova oportunidade para a SPVS amealhar novos horizontes, com um contato estabelecido com a instituição Conservation Land Trust, com atividades no Chile e Argentina. O contato com Douglas Tompkins, empresário conservacionista responsável pela criação de vários parques nacionais nesses países, abriu a oportunidade de conhecermos melhor a experiência de Esteros del Iberá, na província de Corrientes, na Argentina, onde foi aplicado o conceito inovador de Produção de Natureza. Esforços seguidos de aproximação culminaram com um curso sobre o tema, com a participação ampla de instituições atuantes na região do e Guaraqueçaba no Paraná. Surge deste movimento a iniciativa Grande Reserva Mata Atlântica, com o apoio da Fundação Boticário, SPVS e outros parceiros, num esforço supra institucional que hoje envolve 62 municípios de mais de 2,7 milhões de hectares, no maior contínuo do bioma Mata Atlântica ainda existente em bom estado de conservação, com resultados cada vez mais surpreendentes e animadores.


A entrada da segunda década dos anos 2000 é especialmente preocupante, pelos enormes retrocessos ocorridos em nosso país nos últimos anos, demonstrando um distanciamento de fatores cada vez mais evidenciados, na forma de eventos climáticos extremos, causando frequentes e intensos prejuízos de ordem social e econômica de grandes proporções. Clima e biodiversidade agindo sinergicamente na perda dos elementos da natureza que nos protegem e suprem. Justamente no momento em que mais são evidenciadas as necessidades de mudanças de posicionamento nas formas de desenvolvimento, observa-se o fortalecimento de posições antagônicas, que se negam a reconhecer a realidade que nos posiciona a todos para um novo normal. Se de um lado traz desalento a falta de maior reatividade de nossa sociedade, são justamente as comprovações dos enormes impactos sobre a qualidade de vida e dos negócios que podem, enfim, permitir que possamos avançar mais na agenda de proteção de nosso patrimônio natural.


Estamos, enfim, muito distantes de atingir a missão de incorporar a conservação como parte indissociável do desenvolvimento social e econômico. São gigantescos os desafios à frente, que certamente estão majorados de forma exponencial se comparados com os cenários de algumas décadas atrás. O tempo ficou curto, a nossa capacidade de enfrentar os eventos extremos se mostra risível e pouco eficiente. A realidade demonstra que seguem avançando os processos de degradação, com muito poucas instâncias efetivamente preocupadas e engajadas com a agenda de reverter o que se apresenta como uma ameaça real e sem precedentes a toda a sociedade. 


No ano que completa 40 anos  de existência, a SPVS e todos seus atores, vinculados direta ou indiretamente, devem se orgulhar de ter conseguido transitar por estas décadas sobrevivendo a toda forma de vicissitudes e, mesmo assim, construindo um valioso arcabouço de realizações que devem se motivo de orgulho, inspiração e, sobretudo de esperança por um mundo melhor.



Clóvis Borges é diretor-executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS).




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